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Biografia de Mariana Davies

Mariana Davies é um dos segredos mais bem guardados da nova música brasileira. Quem ouviu o primeiro disco dessa cantora, compositora e multinstrumentista carioca, lançado em 2000, poderia até desconfiar disso. Mariana Davies revelava uma voz segura e bonita, trazia pelo menos uma dúzia de boas canções e resolvia de forma satisfatória uma velha questão: como ser roqueira no Brasil sem cair em estereótipos? Pois bem. Quase quatro anos se passaram e ela deu um salto na velocidade da luz: Flores Humanas é bem mais do que o disco de uma promessa. Aos 29 anos de idade, Mariana conseguiu fazer, como bem reparou o amigo e mentor Robertinho do Recife, o seu Sgt. Pepper¹s. Uma metáfora perigosa, sim, mas usada por um dos maiores músicos do Brasil que, curiosamente, descobriu Mariana ao escalá-la para como cantora um projeto de transposição sinfônica das obras dos Beatles, elogiado pelo próprio maestro do grupo, George Martin. Mas é uma metáfora que deve ser entendida além das aparências. Flores Humanas é um resultado da ambição artística de quem sabia exatamente o que queria e fez. É um disco de sonoridades pacientemente construídas, de temas audaciosos, de escrita muito pessoal e de trabalho conceitual muito denso. Sim, esse é um disco conceitual. E os Beatles são apenas o ponto de partida.

Pianista autodidata desde os 13 anos, Mariana, uma carioca que passou boa parte da vida em Petrópolis, pode despertar uma série de comparações enquanto rolam as primeiras músicas de Flores Humanas. A melancolia e sofisticação de parte das canções, o tratamento sonoro e a dinâmica das guitarras (entre o suave e o ríspido), os coloridos de piano aqui e ali, tudo traz à mente o trabalho de Radiohead e de algumas mulheres inglesas e americanas que estão entre suas melhores contemporâneas: Fiona Apple, PJ Harvey, Tori Amos, Shirley Manson (Garbage), entre outras. Assim como esses artistas, Mariana não teve receio em transformar sentimentos, por mais dolorosos que fossem, em arte. Flores Humanas, conta ela, é um disco sobre o universo infantil e sobre como tudo o que acontece na infância vai repercutir na idade adulta. O forte foi a morte, por câncer, de seu irmão Marco Antônio, ainda criança. Ele é o sujeito de duas das mais fortes canções do disco, que vêm coladas: "Constelação", uma explosão emocional à base de guitarras que beira o Afghan Whigs, abre com um dos versos mais contundentes da música popular dos últimos tempos: "O presente do menino tem nome de constelação". Já "Colheita" mantém a intensidade em versos como "a visão dessa janela / incomoda seu almoço / vem pra fora ver o dia / lindo que está chovendo". Como diria o Garbage, I´m only happy when it rains. Ou melhor: alguém lembra de tanta tristeza e beleza juntos desde Renato Russo?

Da infância nada idílica, essa assumida reclusa parte para a vida adulta em canções que novamente refletem suas experiências (um relacionamento que a jogou "para cima e para baixo"), mas também se baseiam também em observações das vidas de conhecidos. "Teria ficado maluca se não fosse a música", diz Mariana, que no palco empunha uma guitarra Fender Telecaster e desde Chrissis Hynde, dos Pretenders, mulheres com Telecasters são algo que não deve ser ignorado. As canções são tensas, porém lúcidas, sem hesitações ou confeitos. Na abertura do disco, com "Entre Nós" e "Conto de Farsas" (êta título!) Mariana mostra que não precisa berrar para se impor com seu recado. Mais à frente, em "Para o Bem de Quem", fica evidente o cuidadoso trabalho que teve com sua banda, que ela ensaiou durante meses seguidos antes de entrar no estúdio, para gravar Flores Humanas praticamente ao vivo (em produção que ela dividiu com Márcio Gama). A música traz toda aquela levada feroz, empolgada com o rock¹n¹roll, típica de um The Who. A faixa seguinte, "Tem Alguém no Meu Lugar", surge como candidata a hit do disco. Tente ficar imune ao refrão, como seus delicados jogos de palavras: "Tem alguém no meu lugar / Tem alguém no seu lugar/ beijando a minha boca / pegando a mão que é minha".

As dores do amor que já estão lá, latentes, na infância respondem por parte importante da inspiração de Flores Humanas. Em "Música do Coração", rock melancólico e barulhento, Mariana avisa: "só quero o que é meu / e não o que você me der". Em "Qual o Problema?", o recado é mais duro: "eu falei que tinha alguém / você não quis acreditar". Já no rock definitivamente gótico "Ensina-me a Morrer", outra constatação dolorosa: "quanto mais lhe machuquei / foi quando mais eu lhe amei". No universo de Mariana Davies, o Kid Abelha é uma banda dark ouça então o que ela faz com "Alice (Não Me Escreva Aquela Carta de Amor)". A cantora tira o amor da jogada sem desvirtuar o sentimento da composição. Outra música que achou lugar no universo de Mariana foi "Revelação", sucesso de Fagner (com Robertinho de Recife na guitarra solo!), composto por Clésio e Clodo. "Sentimento ilhado, morto amordaçado, volta a incomodar" haveria algo mais Mariana Davies. Há, sim, "Indecisão", da amiga MarthaV e Léo Shanty, que aparece como uma daquelas boas faixas do Portishead, perfeitas para os dias cinzentos. Tudo a ver com esse disco que acaba com a faixa-título, escondida depois de algum silêncio e gravada só com voz e violão. "Você ainda volta pra mim!", canta ela, fechando de forma brilhante o conceito desse Flores Humanas, disco que é muito mais do (que o muito) que aparenta.